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“Todos os Mortos” retrata feridas deixadas pela escravidão

Filme exibido no sábado, dia 19, faz parte da mostra de longas-metragens brasileiros do 48º Festival de Cinema de Gramado

 
Filme conta a história de duas famílias em lados opostos da escravidão / FOTO: Reprodução

Igor Mallmann

 

Certamente os séculos de utilização de trabalho escravo no Brasil são um dos aspectos mais tristes e vergonhosos da história da formação do nosso país. Muito se tenta amenizar e até tratar o assunto como algo superado, mas a verdade é que as marcas deixadas pelo período escravocrata continuam perceptíveis no tecido social. Quando se fala da abolição da escravidão como um marco histórico, esquece-se que essa abolição esteve longe de ser uma solução, pois foi sucedida por muitas outras formas de exploração econômica e exclusão social. Exibido no sábado, dia 19,no Festival de Cinema de Gramado, o longa-metragem brasileiro Todos os Mortos (dirigido por Caetano Gotardo e Marco Dutra) retrata justamente o período imediatamente posterior à abolição, situando-se na virada do século XIX para o XX.

O filme nos apresenta às mulheres da família Soares: a freira Maria (Clarissa Kiste), a sua conturbada irmã Ana (Carolina Bianchi) e sua adoentada mãe Isabel (Thaia Perez). De outro lado, temos a história da família Nascimento, que havia sido escravizada pelos Soares. Iná Nascimento (Mawusi Tulani) luta para que seu filho João (Agyei Augusto) possa ter um futuro, ao mesmo tempo em que busca reunir novamente a família, uma vez que o seu marido Antônio (Rogério Brito) havia partido em busca de trabalho na cidade de São Paulo.

O ponto de tensão na narrativa se dá quando Iná é chamada a São Paulo justamente para ajudar na cura de Isabel. As filhas da idosa pedem que Iná cante e evoque suas crenças de raiz africana. O chamado é aparentemente pacífico e respeitoso, mas aos poucos as velhas contradições se revelam. A escravidão pode ter sido oficialmente abolida, mas permanecem as diferenças entre a classe que detém privilégios e os padecem para a manutenção dessas desigualdades.

Marcante é cena do filme em que Iná descobre que o menino João passa os dias na companhia das mulheres Soares. Ela repreende o filho por lhe esconder tal rotina, enquanto que as Soares justificam que gostam da presença do garoto e que não veem mal algum. Iná, por outro lado, alerta para o fato de que os pequenos favores que o menino presta na casa podem resultar numa reprodução da antiga herança maldita. A mãe não quer ver João ser uma espécie de criado daqueles que no passado escravizaram sua família. Quando Iná chama o filho para ir embora, Ana agarra João pelo braço, em um claro gesto intuitivo de dominação.

Ana, a propósito, é uma personagem completamente transtornada, com suas visões e ações que vão ficando mais macabras com o desenrolar do enredo. Por fim, no desfecho, ela acaba executando o ato de maior violência do filme.

As sonoridades têm papel central no longa-metragem. Os cantos e timbres da crença de matriz africana permeiam a história e dão origem a uma narrativa própria. Por outro lado, temos a música erudita e a provocação relacionada ao lugar do piano.

Temos questões muito fortes relacionadas às mulheres e como se inserem nas relações sociais. Iná traz as particularidades do que é ser uma mulher negra em um país com racismo estrutural, ao mesmo tempo que também expressa sua vontade e identidade, buscando se reencontrar com seu amor e com a cultura ancestral de seu povo. Já as mulheres brancas da família Soares, tentando se agarrar a seus privilégios, também demonstram as contradições da sociedade patriarcal, na qual os espaços de poder e relevância estão reservados aos homens.

Por fim, Todos os Mortos também é um retrato da São Paulo da virada para o século XX, com a entrada em cena de novos fatores, como os imigrantes europeus. Mas também não estamos falando de um filme de época estático. Há elementos que forçam o expectador a trazer a reflexão das feridas da escravidão e do racismo para a atualidade. Há, por exemplo, a curiosa inclusão de sons contemporâneos em algumas cenas, como o de um helicóptero. Conforme os diretores, a intenção foi de deixar claro que o longa não fala só do passado, mas necessariamente do presente.

Independentemente da avaliação técnica que será feita pelo júri do Festival, parece-me que por si só a iniciativa de trazer esse filme para Gramado foi um acerto da curadoria. Vivemos em um momento político em que se tenta sufocar o debate sobre as contradições sociais e históricas do país. O cinema e outras iniciativas artísticas também sofrem com ataques. Portanto, Todos os Mortos é um filme necessário e que merece consideração por sua proposta de tocar nesses temas tão delicados e urgentes


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